sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Recenseamento no Rio de Janeiro

Mais uma crônica de todos os tempos.
Vale ler, sempre, Olavo Bilac.


Recenseamento 

Enfim, vai o Rio de Janeiro conhecer-se a si mesmo… Uma cidade sem recenseamento é uma cidade que a si mesma se ignora, porque não tem a consciência da sua força, do seu valor, da sua importância. 
É mais que um serviço —- e não é dos menores — que o Rio vai dever ao seu prefeito, a esse homem providencial, de quem já se pode impunemente dizer o maior bem, sem o risco de passar por adulador, pois que já não há, em toda a cidade, quem o não admire e o não louve. 
Infelizmente, já se descobriu o meio de opor embaraços à realização da bela idéia. No mesmo dia em que o prefeito decretava a organização do recenseamento da população, era publicado um ofício do ministro da Guerra, solicitando a organização do alistamento militar… E o povo, cotejando essas duas medidas, juntando-as, pesando-as na mesma balança, começou logo a atribuir-lhes uma aliança oculta um conúbio escondido, uma identidade de intuitos e de fins. A gente culta (que infelizmente não é legião) sabe- que esses dois serviços nada têm de comum, e que o propósito da prefeitura é, única e exclusivamente, o de saber quando habitantes tem a capital da República — cousa que, por vergonha de todos nós, ainda não se havia tentado averiguar. Mas, para a gente ignorante e desconfiada (a desconfiança e a ignorância são irmãs gêmeas), o recenseamento é o pretexto para o alistamento militar — e já o medo da farda e do serviço de caserna começa a sugerir às almas inquietas a idéia de se recusar a encher as listas censitárias. 
Esse terror é natural. Antigamente, o recenseamento apenas era feito para auxiliar dois serviços profundamente antipáticos aos povos de todos os tempos: o do recruta­mento militar e o da cobrança de impostos. O imposto e a farda — dois espectros, dois espantalhos! Já na velha Roma, no remotíssimo tempo de Servius Tulius, quando oscuratores tribuum saíam, com as suas tabuinhas ence­radas e os seus estiletes de marfim, a percorrer a urbe, e a recensear os habitantes, separando-os em assidui e proletarii — um medo pânico se alastrava pelas vielas e pelas alfurjas da cidade, e um terço da população, sabendo que aquilo significava guerra ou imposto, cobrança de sangue ou cobrança de dinheiro, transpunha as portas, e ia refu­giar-se no campo.

Hoje, o recenseamento tem um fim mais amplo, mais nobre, mais belo — um fim social.
E uma parte essencial da estatística, que, sendo "o estudo numérico dos fatos sociais", é uma das ciências tributárias e auxiliares da socio­logia. Como explicam os mestres da economia política, a vida social é um movimento perpétuo, uma transformação contínua, e uma constante renovação de fenômenos, que, por mais diversos que pareçam, sempre se podem classi­ficar em um número relativamente limitado de categorias. Não há um só fato individual que deixe de ser interessante, porque os fatos individuais, reunidos, formam os fatos so­ciais; e não há meio de governar sem o conhecimento des­ses fatos. 
É a estatística que torna possível o governo. Ela é, por assim dizer, a "escrituração social": se uma casa de comércio não pode viver e prosperar sem o registro minu­cioso das suas compras e vendas, e sem* os balanços pe­riódicos que demonstram o bom ou mau çstado dos seus negócios — também a sociedade humana não pode dispensar os seus guarda-livros, que são os encarregados da estatística. 
Essa "escrituração social" tem sido até hoje criminosa mente relaxada no Brasil. Os "guarda-livros" do país, ou são incompetentes, ou são indiferentes. Aqui a estatística é um mito. Para não ir muito longe, e apenas citar um fato simples e de fácil verificação, basta lembrar que, no Rio ele Janeiro, a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional não têm catálogos! É incrível, mas é verdade… Se nem temos sido capazes de organizar e publicar o catálogo de um museu ou de uma biblioteca, não é de espantar que não tenhamos organizado e publicado até hoje o catálogo geral da nossa população, das nossas riquezas, do nosso trabalho, da nossa vida…

Há pouco tempo,; a Legação Japonesa no Brasil dis-tribuiu, pelas repartições públicas e pelas redações dos jornais, o Anuário financeiro e econômico do Japão relativo a 190$. Lendo esse livro, que é um monumento assombroso e maravilhoso de estatística, é que se pode compreender o estupendo progresso daquela nação.

O que nós costumamos chamar "milagres" não é mais do que o resultado simples e natural da combinação destas duas forças: o trabalho e o método… Nesse anuário, tudo quanto constitui a vida do país está incluído, estudado, dis­criminado, catalogado, classificado: orçamentos, dívida pú­blica, empréstimos, agricultura, indústria, viação, comércio. Há ali cousas que espantam; há, por exemplo, um quadro demonstrativo da produção do fumo, que é um assombro de exatidão e de minúcia: o fumo colhido foi contado de folha em folha… E com esse trabalho e com esse método que as casas de comércio prosperam, que as casas de família têm fartura e conforto, e que as nações enriquecem e se fazem fortes e respeitadas! 

Agora reparo que a "Crônica" está perdendo o tom que lhe compete, e enveredando por um estilo que não é o seu. 

Estas cousas são tão corriqueiras, que até as crianças das escolas primárias as conhecem… 

E parece, realmente, que é pedantaria ridícula, e ridícu­la ostentação de  barata, o estar aqui o cronista a demonstrar as vantagens e a utilidade da estatística em geral, e do recenseamento em particular… 

Mas estas idéias, tão simples, tão claras, tão vulgares, não podem, desgraçadamente, ser eficazmente incutidas no ânimo de toda a nossa população. Por quê? porque uma grande parte da nossa população não sabe ler… 

Basta lembrar a última bernarda que tivemos no Rio: a de novembro de 1904… Que foi o que causou esses sanguinolentos motins? Foi a intriga perversa de alguns especuladores políticos que excitaram o povo contra a lei da vacinação: e muita gente acreditava que os médicos iam injetar no seu corpo sangue de rato atacado de pestebubônica! Essa balela, que apenas parecia cômica, teve efeitos trágicos. Que utilidade poderiam ter, para destruí-la, os boletins profusamente espalhados pelas autoridades sanitárias, e as explicações dadas pela imprensa? Nenhuma. O papel benéfico da imprensa não pôde deixar de ser quase nulo, numa cidade que conta quase 1 milhão de habitantes, mas na qual todos os jornais diários reunidos não chegam a vender 100 mil exemplares por dia… 
Assim,.não há meio de contrariar eficazmente o equívoco, que a publicação simultânea das duas medidas veio criar. Se o Ministério da Guerra houvesse adiado a publi cação do seu propósito — o povo, que confia no prefeito, porque dele só tem recebido benefícios e cuidados, veria no recenseamenro mais uma prova da sua paterna! adminis­tração, c auxiliá-lo-ia. Mas parece que há, neste pais, uma doença orgânica, que leva muita gente, irresistivelmente, a perturbar e estragar, com consciente ou inconsciente mal­dade, tudo quanto se pretende fizer de bom. 
Vão agora tirar da cabeça de certa gente que a entrega das listas censitárias há de expô-la ao recrutamento militar! 
O que é verdade é que, para, abusivamente, c contra­riando expressamente a letra da lei, pôr em prática o recru­tamento forçado, as autoridades militares não carecem do recenseamento. Ainda há pouco, para organizar a parada espetaculosa de uma guarda nacional que não existe, alguns coronéis de mentira andaram complicando a vida domésti­ca dos cidadãos, privando-os violentamente dos serviços dos seus cozinheiros e dos seus copeiros…
O povo, porém, não compreende isso. Se lhe não de­monstrarem cabalmente que o recenseamento civil, orga­nizado pela prefeitura, nada tem de comum com o alista­mento militar, organizado pelo Ministério da Guerra, ele, apavorado pelo fantasma da Farda, há de mais uma vez fur­tar-se ao cumprimento de um dever social, que tão facil­mente e com tão grande utilidade para todos pode ser cumprido. Como, porém, fizer essa demonstração àqueles que, por culpa e desídia do Estado, continuam aviltados pelo analfabetismo, moralmente cegos, tristemente manti­dos na ignorância, privados da compreensão dos seus direi­tos e dos seus deveres?  
   
É aqui que tudo vem ter: o problema da instrução é como, nas máquinas, o eixo central, em torno do qual os movimentos de todas as peças se combinam e conjugam. Por isso, é que não deixo de tocar este realejo, cuja música pode parecer enfadonha, mas é indispensável: e "si cette histoire vous embête,/ nous allons la recommencer!". ["se esta história vos aborrece/ nós vamos recomeçá-la” ]
Gazeta de Notícias, em 17 de junho de 1906


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