terça-feira, 3 de abril de 2012

A Sexta-Feira Santa em outros tempos...


Continuando o texto do post anterior...




"A Sexta-Feira da Paixão foi recebida com um solene silêncio. Nem tiros de canhão, nem bimbalhar de sinos, nem espoucar de foguetes. O único som que ouvimos foi o surdo e fúnebre troar, de minuto a minuto, do canhão do navio-almirante francês ancorado na baía em honra do dia. À uma hora fui assistir a uma cerimônia paroquial, em que o corpo do nosso Salvador foi carregado pelos fiéis ao redor da igreja, acompanhado por música solene. À noite, porém, é que houve a cerimônia mais imponente da igreja católica. Foi realizada na igreja da Ordem Terceira, perto do palácio, para onde me dirigi às sete horas. 

A igreja estava quase às escuras e cheia de gente. Uma imensa cortina roxa encobria o coro. Dentro em pouco um dos padres subiu ao púlpito e começou com muita eloqüência um sermão sobre a crucificação. Depois de explicar a causa da morte de Cristo, originada por nossos pecados, e a maneira dolorosa e ignominiosa com que foi levada a efeito, ele falou de repente: "vejam o Salvador que vocês assassinaram!", e imediatamente a cortina se abriu, como no início de uma tragédia, deixando ver todas as pessoas que iam representar o drama religioso. 
Cortinas pretas ornavam o coro, que estava brilhantemente iluminado por reluzentes candelabros de prata. Em baixo se achava colocado um suntuoso mausoléu, onde jazia a imagem de Cristo. De cada lado estavam postadas figuras com longas barbas, representando os discípulos, todas vestidas ricamente, ainda que de forma grotesca. À frente se achava um bando de soldados romanos, com capacetes e peitorais dourados e um estandarte com as letras S P Q R bordados no seu centro, e logo adiante o centurião, um homem enorme e de aspecto rude, com uma imensa barba negra e um ar tão feroz que algumas das mulheres escondiam o rosto ao vê-lo. 
Formou-se então a procissão, que saiu para a rua. Na frente, iam dois homens levando enormes castiçais com grossas velas de cera; em seguida, um homem carregando uma cruz de madeira negra, sobre a qual estava estendido um pano branco formando a letra M; essa letra, conforme observei, aparecia em todas as coisas e representava o nome de Maria. Seguiam-se as fileiras habituais dos portadores de tochas, formando um amplo e extenso corredor, por onde passavam as crianças vestidas de anjo, com asas feitas de penas de ganso, a barra das vestes armada com arame, as faces pintadas de rouge, os cabelos empoados, e sobre a cabeça um enorme toucado de seda colorida, o que dava a elas a aparência irisada de um arco-íris. 
Todas elas levavam nas mãos algum objeto como emblema – uma, os pregos, outra o martelo,  uma terceira a esponja, a quarta a lança, a quinta a escada, e a última – uma criança mais velha do que as outras – trazendo o galo.
Você talvez ignore que os brasileiros possuem um descendente do próprio galo que cantou quando Pedro negou o seu mestre. Ele me foi mostrado várias vezes. Certa manhã fui surpreendido por um som extraordinário vindo de um quintal não muito distante da nossa casa, que identifiquei como sendo o canto de um galo. Tratava-se de uma ave singularíssima; era muito alto, quase só pernas e coxas encimadas por um corpo diminuto, e quando espichava o pescoço para cantar ficava tão comprido quanto um grou. Mas era o seu canto que particularmente o distinguia dos outros, pois ele prolongava a sua nota final num lamento roufenho e lúgubre, que tinha algo de admoestatório. 
Um dos nossos criados brasileiros informou-me que se  tratava da mesma raça do galo que cantou para Pedro e que aquela nota longa e melancólica representava uma advertência e uma censura a mais a ele, pelo que havia feito. 
A procissão foi encerrada com o caixão, precedido de inúmeros figurantes com as cabeças cobertas com capuzes brancos e negros e acompanhados de apóstolos, soldados e um centurião; em seguida vinha um grupo de anjos e, por último, a própria Virgem, a qual, por um anacronismo, apresenta a mesma e jovem aparência que tem na procissão das festas da Natividade, não se dando eles conta de que trinta e dois anos decorreram entre uma data e outra, o que deveria trazer alguma modificação ao rosto de uma mulher. Completava a procissão uma banda executando um hino fúnebre, seguida do regimento com armas em funeral e os oficiais com braçadeiras negras. 
Dessa imponente procissão participavam 800 pessoas, mais da metade levando velas de cera, as quais percorreram as ruas durante duas horas. Enquanto o desfile prosseguia, uma nuvem escura se formou sobre suas cabeças, com vívidos relâmpagos e retumbantes trovões, o que deu ao espetáculo um ar realmente grandioso. Seguiu-se uma chuva torrencial, o que não impediu que a procissão continuasse sua marcha vagarosa, todos de cabeça descoberta, como se o céu estivesse límpido e sereno."

Continua amanhã. 





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