terça-feira, 12 de maio de 2009

Li, gostei e reproduzo

Escrevo de São Paulo, onde visitei a Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Temos alguns títulos do catálogo da Nitpress sendo oferecidos lá e eu mesmo tive o prazer de entrevistar Pedro Herz, dono da rede Cultura, para a revista O Prelo, da Imprensa Oficial do Estado do Rio, dentro de uma matéria sobre rodas literárias. Porém, ainda não havia tido a oportunidade de ver como ficou a loja depois da reforma que a transformou na maior livraria do país, em 2007, com uma área de 4.300 metros quadrados, distribuídos em três pisos.
Confesso que, ao entrar, fiquei um tanto atordoado. Eu, que sempre vivi com o umbigo encostado na Baía da Guanabara, experimentei talvez a sensação de alguém que chega do interior e se vê pela primeira vez diante do mar. Não sabia onde pousar o olhar naquele oceano literário, cuja amplitude se denuncia logo na entrada da loja, com uma exposição de livros publicados em diversos países. O pequeno príncipe, por exemplo, era apresentado numa banca em edições brasileiras, americanas, italiana e francesa.
O impacto é bem diferente do causado, mesmo na primeira visita, pela Biblioteca Nacional ou o Real Gabinete Português de Leitura, no Rio, ambientes onde predomina o respeito reverencial por verdadeiros templos da cultura e da civilização humanas. Aqui, no entanto, é como se estivéssemos em uma Alexandria dos tempos modernos, multicolorida, totalmente hi-tech,
aconchegante e, sobretudo, abarrotada de livros, muitos livros, todos disponíveis ao tato e a todos os demais sentidos - a visão, o olfato, a audição (existem até livros que falam!) e o paladar (como não, se eles existem para serem devorados?).
Se há uma coisa que admiro nessa livraria, mais do que o seu gigantismo, é o respeito que ela tem pela bibliodiversidade (talvez uma coisa não fosse possível sem a outra, pois livros necessitam de espaço). Posso falar pela minha experiência de editor, dono de uma pequena editora independente, focada em um nicho tão importante quanto desprezado pelos grandes
conglomerados editoriais - a literatura fluminense. Nenhuma outra rede se mostra
tão aberta a receber obras das mais diversas origens e tendências como a Cultura, oferecendo ao público o maior cardápio livreiro do país, sem abrir mão, é claro, dos bestsellers que fazem as caixas registradoras trabalhar sem parar.
Depois de alguns instantes de indecisão, dirigi-me instintivamente para o setor de literatura brasileira. Pensei: aqui é um bom lugar para medir a temperatura editorial do centenário de morte de Euclides da Cunha, a transcorrer este ano. Depois de procurar por algum tempo, achei duas edições espartanas de Os sertões, o único livro encontrado do escritor fluminense no meio de 2.742.821 títulos presentes neste gigante livreiro (número fornecido em seu site). A constatação me deixou assombrado, embora perplexo nem tanto, pois já sabia, de antemão, da pouca importância dada pelo setor editorial a esta marcante efeméride.
Corri os olhos por algumas prateleiras próximas, onde se achavam os livros de Machado de Assis, cujo centenário de morte também foi lembrado, com todas as honras devidas, no ano passado. A comparação era inevitável. Lá estavam todas as obras do “Bruxo do Cosme Velho”, inclusive as menos afamadas, como Papéis avulsos. De Dom Casmurro e Memórias póstumas de Braz Cubas havia várias edições, saídas por diversas editoras. Tive a curiosidade de contar, com a ajuda de uma prestimosa atendente da loja, e somei, apenas entre as disponíveis na rede, excluindo as esgotadas, 25 edições de Dom Casmurro, contra apenas duas de Os sertões. E onde estariam os outros títulos do autor desta que é considerada a maior obra da literatura brasileira (Os sertões), como À margem da história, Contrastes e confrontos e Peru versus Bolívia?
Não, a culpa não era da livraria. Mesmo que o comprador da loja fosse um euclidiano
convicto, ele teria dificuldades de encontrar novidades sobre o autor no catálogo das editoras. Ao contrário do que ocorreu no centenário de morte de Machado de Assis, repleto de lançamentos (só a Record publicou cinco títulos), os 100 anos sem Euclides da Cunha vem passando, até agora, em brancas nuvens no meio editorial. Existem duas grandes exposições programadas (uma na ABL e outra na Biblioteca Nacional), um importante seminário em Cantagalo, em setembro, além de vários outros eventos, incluindo a tradicional Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, mas muito pouco em termos de livros. Só tenho conhecimento, até o momento, da publicação das Obras Completas de Euclides da Cunha, que sairá pela Nova Aguilar no final de julho, sob a responsabilidade de Paulo Roberto Pereira,
e de mais uma antologia da coleção “Introdução aos Clássicos Fluminenses”, da
Nitpress, com organização de Edmo Rodrigues Lutterbach, também prevista para o
início do segundo semestre.
O projeto confiado a Paulo Roberto Pereira, por exemplo, é em si uma grande e louvável empreitada, que está sendo levada a cabo com grande esmero pelo organizador, mas o que impressiona é a deficiência numérica de títulos programados pelas editoras e não a qualidade das poucas edições projetadas. Será que as casas editoriais foram contaminadas pelo virus
“politicamente correto” que baniu Euclides da Cunha dos concursos vestibulares (veja, a respeito, a postagem entitulada
“Euclides vive”), sob o argumento simplório de que algumas das teorias científicas defendidas por ele em Os sertões estariam ultrapassadas, sem levar em consideração a gigantesca contribuição da obra do escritor fluminense, considerado, entre outras tantas qualidades particularíssimas, o precursor da sociologia, da ecologia e do modernismo no Brasil?
Não há como negar que a produção literária de Machado é muito maior, quantitativamente, do que a deixada por Euclides. Afinal, teve uma vida longa se comparada com a deste último,ceifada tragicamente com pouco mais de 40 anos, quando se debruçava sobre grandes projetos futuros, como, por exemplo, um novo épico nacional, semelhante em grandiloquência a Os sertões, que seria intitulado “Um paraíso perdido”, ambientado na região amazônica. Não se deve tirar qualquer um dos títulos de Machado das prateleiras das livrarias, mas Euclides, que não lhe foi menor, precisa estar presente por inteiro, em toda extensão de sua obra, ao alcance do público. Nas escolas, nas bibliotecas, nos vestibulares e nas livrarias. E para que não recaia sobre este blogueiro mortal o peso do julgamento comparativo da obra dos dois maiores imortais da literatura brasileira, recorro a Alceu Amoroso Lima:
“Morreram quase juntos, o primeiro em 1909 e o outro em 1908. Entraram, pois, quase juntos para a imortalidade de nossas letras, representando cada qual uma face do espírito brasileiro. Euclides, a voz do povo, Machado, a voz da elite. Um derramado, revolto, impetuoso de sentimento e de estilo. O outro sóbrio, contido, tímido.
Um desdenhando o bom gosto, que o outro cultivava com esmero. Predominava num a terra e no outro o homem. Naquele o espírito e neste o espírito literário. Euclides era a afirmação e o entusiasmo. Machado a hesitação e o sorriso. Num se espelhava a agitação do nosso caldeamento étnico, os ímpetos bravios de nossa barbaria latente. O outro vinha estender sobre esse tumulto nativo o manto ilusoriamente pacificador do pensamento requintado e sutil.” (”Euclides e Machado”, em Três ensaios sobre Machado de Assis, pág. 41)"

Publicado pelo jornalista Luiz Erthal, em 30 de abril de 2009 - blog Toda Palavra.

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